Dra. Fernanda Mocelin

A alma arrancada a força – a perda de um filho

Ontem perdi um amigo. Covid. Uma vida jovem interrompida é uma tragédia imensurável, desleal, inexplicável, mas, ontem, eu só conseguia pensar nos pais.

Há alguns anos, fiz uma oficina com um grande mestre, que disse algo que me marcou: quando perdemos a mãe, ficamos órfãos, quando perdemos o cônjuge, ficamos viúvos. Mas ainda não inventaram uma palavra para os pais que perdem um filho. Dentre todas as possibilidades da língua portuguesa, não existe uma palavra que classifique esta perda. Porque palavras são ínfimas perto do que fica: o vazio. A dor física. A alma arrancada à força.

Muita gente tem medo de ter filhos. Eu entendo. Quando pegamos aquele pacotinho no colo, conhecemos, enfim, o medo. O medo de perder um filho é uma sombra que toda mãe carrega, mas não falamos nisto, porque só o falar, por si, desespera.

Nesta década trabalhando em hospital pediátrico, vi pais perdendo filhos. Bem de perto. Vi a dor visceral, ouvi gritos animalescos, vi homens chorando em posição fetal, vi mãos sangrando após dar socos na parede. Mas, tenho certeza de que estes pais, mesmo sentindo aquela dor dilacerante, acharam que valeu à pena.

O tempo com um filho sempre vale. O cheirinho do pescoço, os primeiros passos, as primeiras palavras, o jeito de sorrir com a boca meio torta, a cor dos olhos, o jeito de gargalhar, a comida preferida, a coceirinha nas costas mesmo depois de grande. Não importa em que momento a história foi interrompida, o amor entre pais e filhos é de uma intensidade avassaladora. E amores assim merecem ser vividos. Sempre.

Talvez a vida não tenha mais graça, talvez nunca mais um dia seja colorido, mas gosto muito do trecho do livro “Em busca de sentido”, quando Vitor Frankl conta que não sabia se sua esposa estava viva, mas que isto não mais importava, porque ele a sentia viva dentro dele. E cita a célebre frase: “põe-me como um selo sobre o teu coração (…) porque o amor é tão forte como a própria morte.”

Os filhos saem da gente, mas quem é mãe sabe: eles seguem dentro, encranhados no nosso útero e vivos, absolutamente vivos, independente do momento em que a vida física foi interrompida.

Bom descanso, meu amigo.


Dra. Fernanda Mocelin – Pneumopediatra – RQE 27.163